Procurava nos olhares perdidos algo que pudesse lhe tornar completo.
Procurava nas flores e nos perfumes alheios o cheiro que lhe preenchia a cabeça.
Procurava nos engarrafamentos a alguém para dividir a gasolina.
Procurava nas músicas o solo de guitarra que lhe arrepiava os pelos do corpo.
Procurava nos doces o sabor de um beijo antigo.
Procurava nas revistas as juras de amor que um dia lhe foram feitas.
Procurava nos bancos vazios alguém para dividir uma história.
Procurava nas festas alguém.
Procurava nas corpos vazios o calor que lhe aqueceria.
Procurava até no pôr do sol uma companhia para seguir em frente.
E de tanto procurar amores, encontrou a solidão...
Escoime-se
domingo, 30 de março de 2014
segunda-feira, 24 de março de 2014
O último vagão
Daniel sempre gostou do ultimo vagão do metrô. Ali estavam sempre as
pessoas mais cansadas e mais estranhas, com roupas atípicas e que fugiam da
normalidade das vestimentas dos demais passageiros. Universitário, com seus
cabelos pretos espetados e com os braços em chamas devido à tatuagem que
fizera, Daniel se encaixava perfeitamente no perfil dos passageiros do último
vagão.
As luzes do final do vagão estavam queimadas desde sempre, e era ali, na
penumbra, que Daniel mais gostava de ficar. Entrando no trem em um dos últimos
horários disponíveis do dia, o jovem sempre via os mesmo rostos cansados loucos
pelo abraço confortante de seus cobertores.
Mas naquela noite, algo mudara.
A plataforma estava vazia, sem os rostos do cotidiano de Daniel. A única
presença ali era de um rapaz, de aparentemente 20 anos, cabelos louros e olhos
claros. O sobretudo e os coturnos mostravam que o rapaz era mais um dos
estranhos que habitavam o último vagão durante a viagem. Duas idosas também
ocupavam a plataforma, ficando o mais longe possível dos rapazes. Daniel pensou
que o vazio da plataforma seria do horário. Devia estar atrasado.
O metrô parou na plataforma e as portas se abriram. Daniel sentou no
banco virado para as janelas, aproveitando que, naquele horário, ninguém
sentaria na sua frente para tampar a visão das luzes dos postes iluminando a
noite. Porém, para sua surpresa, o louro dos coturnos se sentou a sua frente,
encarando Daniel com os gélidos olhos azuis.
O rapaz desviou o olhar por um tempo, e ao perceber que o outro rapaz
não desviara o olhar, teve apenas um pensamento: "Puta merda! Vou ser
estuprado!". Fugindo do olhar obcecado do outro rapaz, Daniel se deslocou
para a outra extremidade do vagão. "Caralho, estamos só nós dois nessa
porra de vagão!"
Sentou-se novamente de frente para a janela. Quando relaxou, pensando
ter se livrado do outro rapaz, ele veio andando em direção a Daniel. As mãos
brancas se arrastando pelo corrimão superior do vagão, fazendo com que o
sobretudo lhe caísse pelas costas como uma tenebrosa capa. Sentou-se de frente
para Daniel, abriu as pernas e encostou os cotovelos nas próprias coxas.
“Puta que pariu! Estou nesse vagão há mais de cinco minutos. Por que as
portas não abrem? Preciso sair daqui!”
Incomodado e sem ter para onde ir, Daniel encarou o louro. Seus olhos,
antes gélidos e azuis, agora eram vermelhos e vívidos, de um brilho sinistro.
Os dedos das mãos que pendiam soltas devido à posição da figura agora estavam
como garras, longos e com unhas pontudas, mais brancas do que as mãos de
qualquer humano vivo. Parecia que todo o sangue havia lhe subido aos olhos, que
estavam cada vez mais vermelhos e tenebrosos.
Daniel arregalou os olhos e se encolheu nos bancos. Só não se mijou por
falta de mijo pronto. O louro, agora transformado em algo não humano, abriu um
sorriso formado por presas longas e afiadas, que ia, literalmente, de orelha a
orelha. Um pouco de saliva escorreu das presas e pingou no chão do vagão. As
luzes oscilaram.
Inclinando a cabeça para a esquerda e passando uma língua longa e
bifurcada pelos lábios finos, a criatura sibilou e disse a Daniel:
“Vamos brincar de pique e pega?”.
Daniel arregalou mais ainda os seus olhos. Com um urro que apenas o
próprio diabo poderia ter produzido, a criatura emanou uma aura de escuridão
que se espalhou pelo vagão. Daniel correu para a outra extremidade, envolvida
na penumbra que lhe era tão reconfortante nos outros dias.
A criatura saltou para os corrimãos superiores. Suas pernas e braços haviam
dobrado de tamanho, sua boca estava tão grande que poderia engolir um gato sem
nem fechar uma mordida. Os olhos vermelhos brilhavam como chamas.
Saltando de um lado para o outro pelas barras paralelas do corrimão
superior, a figura produzia sons guturais, como se estivesse gargalhando no
fundo de sua garganta. A saliva escorria pelas presas de uma forma
descontrolada. Daniel gritou por socorro e esmurrou as portas.
Ao alcançar o rapaz, a criatura se inclinou, encarando-o com os olhos
vermelhos a menos de um palmo de seu rosto. O sorriso babão se expandiu mais
ainda. A língua bifurcada roçou a bochecha de Daniel e a criatura disse que sua
voz gutural: “Te peguei!”. Abrindo a bocarra, a criatura lhe engoliu a cabeça
de uma vez. As mãos em chamas tentando afastar a criatura. Fechou as presas
sobre o pescoço do garoto, o vagão se enche de sangue e o corpo de Daniel se
esparramou sem vida pelo chão.
Com o impacto da mordida, Daniel acordou gritando. O vagão todo lhe
olhando com olhar de medo. “Você está bem, rapaz?” – Perguntou a senhora
sentada ao seu lado. Balançando a cabeça em sentido afirmativo, Daniel
se dirigiu a porta e saltou do vagão. Estava em sua estação. Havia dormido
desde a sua entrada no trem até o seu ponto.
Saiu às pressas da plataforma. Ao deixar a estação, mal percebeu que,
encostado em uma das pilastras de sustentação da plataforma, havia
um homem de sobretudo, coturnos, olhos azuis e cabelos louros. Com um sorriso
que ia de orelha a orelha, o homem começou a lhe seguir.
sexta-feira, 21 de março de 2014
E de nós, não restou nem o acento
Não vou dizer que não sinto sua falta.
Foram bons os momentos que passamos juntos...as juras de amor, os sussurros de eternidade realizados entre os beijos. Seu cabelo em minha mãos. O seu beijo.
Não vou dizer que não sinto falta.
Ainda consigo lembrar do cabelo voando ao vento, da nota sonora emitida na gargalhada. Do cheiro que ainda me persegue, impregnado em pessoas que passam por mim todos os dias. Será que ainda é amor?
Não vou dizer que sinto.
Não é amor. É apenas saudade. Saudade das músicas, das conversas. O seu corpo nas minhas mãos. Saudade de nós. Mas é só isso, saudade. Se eu queria tudo isso de volta?
Não vou dizer.
As brigas, o ciúme, as discussões. Acho que minha mente está melhor sem isso. E acho que meu coração também. Vazio é a melhor maneira para ele. Vazio ele vai tentando achar em outras bocas, em outros corpos, aquilo que você me deu. Aquilo você me fez sentir.
Não.
Isso não é algo horrível. Porque de nós, não sobrou nem o acento.
quinta-feira, 6 de março de 2014
Moça de preto
Havia 3 dias que ela estava ali. Sempre parada, com a mesma
expressão sarcástica no rosto. Eu a via no café, no almoço, na janta. Eu a via
o tempo todo.
Evitei ficar em casa durante esses dias. Ela sempre aparecia
no topo da escada, me impedindo de descer, e do nada, desaparecia. Seus olhos
escuros traziam a sensação de um vazio que sugava a alma; seus lábios vermelhos
sangue aliado aos longos cabelos negros cacheados traziam um ar de sedução ao
rosto esbelto da moça de pele morena.
Era um rosto contraditório,
trazendo a vontade de passar horas lhe olhando. Mas também despertava um horror
inimaginável. A presença dela emanava tal sentimento.
Quando a vi pela primeira vez, julguei ter deixado a porta
do apartamento aberta e ela ser uma vizinha realizando uma possível visita.
Perguntei quem ela era e o que desejava, mas tudo que consegui foi aquele
sorriso sarcástico que causava a sensação de atração e a incrível vontade de
pular o parapeito da escada e cometer suicídio. Não ousei tocá-la. O ar ficava frio
todas as vezes que ela aparecia.
No terceiro dia, perguntei novamente o que ela queria ali e
se precisava de ajuda. Sempre ouvi histórias de almas que não conseguiam deixar
o plano terreno e buscavam por ajuda. Julguei que ela seria uma dessas. Aquele
foi meu maior engano.
Após o fim da pergunta, ela me encarou, como sempre, porém,
ela respondeu com um caloroso sorriso. Aquilo me encantou. Como ela era linda.
Deveria tê-la tocado antes, o frio devia ser apenas uma sensação de medo pelo
fato de ela ir e vir sem prévio aviso e se instalar sempre no mesmo local.
A sensação de encanto logo passou, quando o rosto da moça se
contorceu em uma máscara que o próprio rei dos 7 infernos poderia ter forjado.
Seus dentes se tornaram presas e suas unhas longas garras. O cabelo negro se
tornou chamas que queimaram todo o vestido que usava. Seu rosto tornou-se
grotesco, como o das gárgulas das catedrais de Londres. Mas o que mais me amedrontou
foram os olhos. Meu Deus, aqueles olhos. A sensação de que eles tragavam minha
alma se tornou real. Podia ver a essência da vida deixando meu corpo.
Corri para o meu quarto e fechei a porta. Não adiantou. Com
três murros e um rugido o demônio a derrubou. O cabelo fumegante enegreceu as
paredes em volta, o sorriso animalesco e os olhos vidrados em mim.
Agarrei o terço que minha avó me dera havia tantos anos e
rezei.
Acordei aqui, em um hospital para doidos. Uma enfermeira me
disse que o apartamento em que morava pegou fogo; fui encontrado entre as
chamas e socorrido pelos bombeiros. Passei alguns dias inconsciente e quando
acordei, apenas delirava. Como não possuía família, o hospital decidiu me
enviar para lá, uma vez que os delírios relatavam uma visão grotesca de um pós
vida.
Ninguém acreditou em
minha história, exceto uma senhora, também paciente, que afirmava já ter visto
a morte e conhecido o pós vida que eu dizia em meus delírios. Segundo ela,
alguns demônios vinham a terra para levar almas aleatórias para as trevas. As
vitimas eram escolhidas sem nenhuma razão especial e o terceiro dia era sempre
o escolhido para ceifar a alma. Esta ficava vagando na escuridão eterna, sofrendo
por pecados não cometidos.
Na mesma noite em que ouvi a história da senhora, recebi
flores. Elas eram negras e cheiravam a morte. A luz do quarto vacilou. Senti
frio.
Me levantei para procurar uma enfermeira e perguntar de onde
vieram as flores. A porta do quarto se abriu quando me encontrava a menos de 2
metros dela. A bela moça morena adentrou o cômodo.
Me afastei em pânico ao fundo do quarto, o rosto dela se
transformando, o quarto se tornando negro, o frio se tornando uma queimação que
invadia o âmago de minha alma. Não havia para onde correr.
Sentei encolhido no canto do quarto. Lágrimas escaparam do
rosto com a vinda do demônio. O sorriso grotesco se espalhando por seu rosto.
Ela se aproximou de mim, me encarando com as fendas negras que levavam minha
vida aos poucos. Sua boca monstruosa se aproximou da minha e com um beijo de
fogo, minha alma se foi, perdida no vazio da existência sobrenatural.
Teatro dos Vampíros
Como Luna odiava as noites de
sexta feira. Saia do trabalho as oito, vendo todos os colegas de trabalho indo
para Happy Hours que aconteciam no centro da cidade. Eram tantas gargalhadas e
olhares felizes que ela tinha nojo. Sempre tentava fugir do chefe cinco minutos
antes para evitar toda a felicidade compartilhada entre os companheiros de
trabalho.
Andando com toda pressa, Luna só
pensava em chegar em casa e encontrar sua avó. Aquela velha caquética. O resto
da família havia morrido em um acidente de carro. A cabeça de sua mãe até hoje
não foi encontrada. O corpo do pai apenas os peritos do IML viram e somente
Deus sabe quais partes foram enterradas no caixão. Luna apenas viu o carro, uma
bola de ferro banhada de sangue e vísceras.
Ela teria ficado sozinha e tido a
liberdade de fazer o que quisesse sem a presença de seus pais para controlar
sua vida. Mas a velha continuará ali. Depois de três ataques cardíacos ela não
conseguia mais tomar banho nem comer sozinha. Metade do salário de Luna ia nas
fraldas que a avó usava. Luna odiava as fraldas. Odiava também os banhos, as
refeições, carregar aquele peso morto no trajeto entre a sala e o quarto.
Odiava tudo.
O caminho para casa era sempre
recheado de imaginações nas quais Luna encontrava sua avó sem pulso fitando o
vazio. Certamente seria uma alegria ver o caixão descer e imaginar em como a
carne daquela velha movimentaria o ecossistema. Infelizmente, o pulso estava
sempre ali quando Luna adentrava sua casa e olhava para a avó vendo TV.
Seu celular tocou. “Andrea,
aquela puta!”. Andrea era a melhor amiga de Luna. Estivera presente no enterro
dos pais e desde então era alguém que mantinha contato com a garota. Luna
adoraria receber uma ligação dizendo que a amiga havia escorregado durante o
banho, quebrando o vidro do Box, entrando em seu crânio e lhe tirando a vida.
Naquela noite os pensamentos de
Luna eram os mesmos. A lua cheia preenchia o caminho sem iluminação entre os
blocos da quadra. Aquela luz pálida fazia a garota de cabelos negros chorar. Ela
sempre pensava em como seria sua vida se os pais não estivessem na rodovia
naquela tarde. Ou se teria sido melhor estar no carro com eles.
No meio do caminho um forte vento
a atingiu. Ela parou. Aquilo não era normal, sua espinha estava eriçada e todos
os seus cabelos se arrepiaram. A garota se transformou em uma confusão de
cabelos e vestido esvoaçados pela forte presença que a tocava.
O cenário mudou. De repente os
blocos de prédios que ela via todos os dias desde que mudara para aquele lugar
se transformaram em nada. Um vazio se apoderou do local que estava banhado
apenas com a luz da lua. Em um piscar de olhos, o cenário mudou novamente. Luna
estava em um grande local plano, com teto baixo sustentado por quatro pilastras
em estilo romano; não havia paredes, sendo o local coberto por uma vegetação de
um verde escuro e sinistro. A luz do luar ainda estava lá.
Névoa. Vento. Terror.
Algo lhe abraçava por trás. O rosto
alvo e jovem, com grandes olhos verdes, estava com os lábios rosados colados em
seu ouvido. O cabelo louro penteado rente ao rosto angular combinavam com o
traje negro do homem que a segurava. Ela se apoderou de pavor.
- Bem vinda ao Teatro dos
Vampiros!
O ar gélido que saiu da boca do
homem congelou a alma de Luna que a essa altura tinha o rosto coberto de
lágrimas de pavor.
- Hoje você se juntará a nós. Seu
coração será consumido pela escuridão. Dela nós viemos e para ela sempre
voltaremos. A luz lhe deixou a muito, criança. Você não pertence mais a um
mundo no qual as pessoas podem ser salvas. –o homem apertou o rosto de Luna com
uma das mãos – Quão escuro está o seu coração? E há quanto tempo você não
valoriza o que está ao seu lado?
- Por favor. – Implorou a garota.
-Por favor? É isso que você tem a
me dizer? É Isso que a garota que queria matar a avó sufocada com a própria
merda tem a me dizer? É isso que a garota que pensou em desparafusar as hélices
do ventilador para que a hélice voasse quando um dos colegas de trabalho o
ligasse, na esperança de que no mínimo uma cabeça voasse pelo escritório me
diz? É isso que a menina que queria abrir a barriga da melhor amiga e dar suas
tripas ao cachorro tem a dizer? É só isso?
-Eu nunca quis fazer nada disso –
disse a garota aos soluços.
-Você sempre quis se banhar no
sangue de todos que a rodeavam. Você sabe o porque da cabeça de sua mãe nunca
ter sido encontrada. Você a chutou para que caísse no rio que ficava perto de
onde o carro bateu. Você sempre quis a morte de todos. Sempre quis ser uma de
nós.
De súbito, os dois estavam
cercados por inúmeros seres encapuzados, trajando um manto negro. Era possível
ver rostos aflitos nos mantos. Luna percebeu que os mantos eram feitos com a
alma de pessoas como ela, pessoas que ficaram presas naquele pesadelo.
- Sabe porque aqui se chama
Teatro dos Vampiros? Aqui todos fingem ser o que não são. Todos fingem ser
pessoas boas que nunca quiseram fazer o mal.
O homem soltou Luna, jogando-a em
direção ao chão molhado. A garota viu que o chão não era preto, e sim rubro.
Sangue. O piso estava banhado em sangue.
- Todos fingem ter o coração
puro, banhado em luz. Todos que vêm até aqui atuam. E nós somos a plateia. Nós
somos Deus. Eu sou Deus. Sabemos a verdade por trás de toda a encenação barata,
de todas as desculpas.
Luna sabia que era o fim. Sabia
que não veria mais o sorriso dos amigos no fim do expediente todas as sextas.
Sabia que não veria o olhar travesso de seu chefe quando a via saindo cinco
minutos mais cedo. Sabia que não ouviria a voz feliz de Andrea ao telefone. Sabia
que não veria o sorriso da avó ao entrar em casa; era uma das poucas coisas que
ela ainda podia fazer...sorrir ao ver Luna.
O louro sorriu, fitando Luna com
os olhos verdes. O homem agora segurava uma foice. A morte. O ambiente tremeu.
As figuras encapuzadas fugiram, arrastando seus mantos para a escuridão que
haviam criado. Asas, o louro tinha asas negras...e olhos vermelhos. O teto
começou a cair, fazendo com que o brilho da lua invadisse o lugar. Luna se
encolheu e pediu a Deus que protegesse sua avó. Deus. Há quanto tempo Luna não
pensava nele? “Nós somos Deus. Eu sou Deus”, dissera o diabo que se
materializava em sua frente.
-Você não pode ser Deus.
-Sim, eu sou Deus. O da morte. O
que levará sua alma para as profundezas, o que levará você para sofrer tudo
aquilo que desejou a todos. O que vai te foder todos os dias ouvindo você
gritar por salvação. Eu sou o Deus que o seu coração merece. Eu sou a escuridão
que você criou, sou tudo o que resta de você.
Luna continuou rezando enquanto o
homem falava. Ele agora tinha presas e um único chifre que emanava do meio de
sua testa. A pele branca marcada por veias negras. Luna rezou. Rezou ao Deus
que acreditava que existia antes de ver o corpo dos seus pais. Rezou ao Deus
que esquecerá que existia ao chutar a cabeça de sua mãe para o rio, ao desejar
a morte de todos, ao decidir ser um ser das trevas. O teto desabou mais.
A luz da lua adentrou o ambiente.
Não era a lua. Era o Deus de Luna. O teto ruiu por completo. O diabo queimou,
soltando um grito de dor que arrancou toda a vida da garota. Seu cabelo negro tinha fios brancos devido ao estresse
e ao terror que havia vivido.
O Teatro dos Vampiros ruiu.
Luna acordou caída no chão do
bloco. Foi um sonho. Foi apenas um sonho.
Luna correu para sua casa. Abriu
a porta disposta a dar o mais caloroso abraço em sua avó. Fazia tanto tempo que
não a abraçava que nem sabia mais qual era a sensação. Correu direto para a
sala, para a poltrona em que sua avó ficava. A idosa fitava o vazio, de boca
aberta. Luna parou no portal da sala ao ver a expressão de sua avó. Não tinha
pulso. Sua avó morrerá.
Ao lado da poltrona, em uma
escrivaninha de mogno, havia um cartão preto preenchido com letras brancas.
A escuridão estará em você para sempre. Seu
coração pertence a nós. Sua alma pertence a mim. Seu Deus lhe salvou uma vez.
Mas não pôde salvar o que poderia ter te feito feliz de novo.
Aguardo-te no Teatro dos Vampiros.
E lá de cima
E lá de cima, ele se sentiu completo. Não bem, não feliz,
não infinito. Apenas completo. Havia pessoas com ele. Pessoas que ele não
conhecia, não sabia nada além do nome e do rosto aparente que viu durante 100
dias. Apesar das pessoas, lá em cima só havia ele.
O céu estava azul, com nuvens por toda a parte. Mas o sol
brilhava. Assim como a alma dele, que se sentia livre, como se não houvessem
regras nem pesares que a perseguisse todos os dias. Ele andou com as pessoas.
Riram, conversaram e se conheceram um pouco mais. Apenas o suficiente pra
tornar aquele momento algo eterno. Mas ainda assim, ali em cima só havia ele.
Havia ele e o desejo de liberdade. Era só isso que havia
ali. Os medos, pesares, preocupações. O vazio. Aquele vazio que o assombrava
todos os dias. Aquele que o tomava por inteiro ao amanhecer e lhe acompanhava
até o momento em que seu corpo não aguentava mais. Tudo. Tudo havia sumido.
Menos o desejo de liberdade.
Eles andaram, rindo. Como ele se sentiu completo. Ali não
havia nada. Só ele.
O céu foi fechando, as nuvens escurecendo, e o sol sumindo.
E assim sua alma foi voltando ao normal. Voltando ao que era. Voltando à
escuridão que lhe era tão comum, tão cativa, e tão amiga. Eles voltaram.
Ao descer lá de cima, tudo existia novamente. Os pesares, os
medos, a nostalgia. O vazio.
Todos se foram, mas ele ficou. Lá embaixo. Pensando em como
foi estranho se sentir completo. Eram pessoas que ele não conhecia, num local
novo com uma vista incrível. Mas a vida não era assim.
Era cheia dos mesmos rostos, da mesma vista, do mesmo vazio.
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