segunda-feira, 24 de março de 2014

O último vagão

Daniel sempre gostou do ultimo vagão do metrô. Ali estavam sempre as pessoas mais cansadas e mais estranhas, com roupas atípicas e que fugiam da normalidade das vestimentas dos demais passageiros. Universitário, com seus cabelos pretos espetados e com os braços em chamas devido à tatuagem que fizera, Daniel se encaixava perfeitamente no perfil dos passageiros do último vagão. 

As luzes do final do vagão estavam queimadas desde sempre, e era ali, na penumbra, que Daniel mais gostava de ficar. Entrando no trem em um dos últimos horários disponíveis do dia, o jovem sempre via os mesmo rostos cansados loucos pelo abraço confortante de seus cobertores. 

Mas naquela noite, algo mudara. 

A plataforma estava vazia, sem os rostos do cotidiano de Daniel. A única presença ali era de um rapaz, de aparentemente 20 anos, cabelos louros e olhos claros. O sobretudo e os coturnos mostravam que o rapaz era mais um dos estranhos que habitavam o último vagão durante a viagem. Duas idosas também ocupavam a plataforma, ficando o mais longe possível dos rapazes. Daniel pensou que o vazio da plataforma seria do horário.  Devia estar atrasado. 

O metrô parou na plataforma e as portas se abriram. Daniel sentou no banco virado para as janelas, aproveitando que, naquele horário, ninguém sentaria na sua frente para tampar a visão das luzes dos postes iluminando a noite. Porém, para sua surpresa, o louro dos coturnos se sentou a sua frente, encarando Daniel com os gélidos olhos azuis. 

O rapaz desviou o olhar por um tempo, e ao perceber que o outro rapaz não desviara o olhar, teve apenas um pensamento: "Puta merda! Vou ser estuprado!". Fugindo do olhar obcecado do outro rapaz, Daniel se deslocou para a outra extremidade do vagão. "Caralho, estamos só nós dois nessa porra de vagão!"

Sentou-se novamente de frente para a janela. Quando relaxou, pensando ter se livrado do outro rapaz, ele veio andando em direção a Daniel. As mãos brancas se arrastando pelo corrimão superior do vagão, fazendo com que o sobretudo lhe caísse pelas costas como uma tenebrosa capa. Sentou-se de frente para Daniel, abriu as pernas e encostou os cotovelos nas próprias coxas.
“Puta que pariu! Estou nesse vagão há mais de cinco minutos. Por que as portas não abrem? Preciso sair daqui!”

Incomodado e sem ter para onde ir, Daniel encarou o louro. Seus olhos, antes gélidos e azuis, agora eram vermelhos e vívidos, de um brilho sinistro. Os dedos das mãos que pendiam soltas devido à posição da figura agora estavam como garras, longos e com unhas pontudas, mais brancas do que as mãos de qualquer humano vivo. Parecia que todo o sangue havia lhe subido aos olhos, que estavam cada vez mais vermelhos e tenebrosos.

Daniel arregalou os olhos e se encolheu nos bancos. Só não se mijou por falta de mijo pronto. O louro, agora transformado em algo não humano, abriu um sorriso formado por presas longas e afiadas, que ia, literalmente, de orelha a orelha. Um pouco de saliva escorreu das presas e pingou no chão do vagão. As luzes oscilaram.

Inclinando a cabeça para a esquerda e passando uma língua longa e bifurcada pelos lábios finos, a criatura sibilou e disse a Daniel: 

“Vamos brincar de pique e pega?”.

Daniel arregalou mais ainda os seus olhos. Com um urro que apenas o próprio diabo poderia ter produzido, a criatura emanou uma aura de escuridão que se espalhou pelo vagão. Daniel correu para a outra extremidade, envolvida na penumbra que lhe era tão reconfortante nos outros dias.

A criatura saltou para os corrimãos superiores. Suas pernas e braços haviam dobrado de tamanho, sua boca estava tão grande que poderia engolir um gato sem nem fechar uma mordida. Os olhos vermelhos brilhavam como chamas.

Saltando de um lado para o outro pelas barras paralelas do corrimão superior, a figura produzia sons guturais, como se estivesse gargalhando no fundo de sua garganta. A saliva escorria pelas presas de uma forma descontrolada. Daniel gritou por socorro e esmurrou as portas.

Ao alcançar o rapaz, a criatura se inclinou, encarando-o com os olhos vermelhos a menos de um palmo de seu rosto. O sorriso babão se expandiu mais ainda. A língua bifurcada roçou a bochecha de Daniel e a criatura disse que sua voz gutural: “Te peguei!”. Abrindo a bocarra, a criatura lhe engoliu a cabeça de uma vez. As mãos em chamas tentando afastar a criatura. Fechou as presas sobre o pescoço do garoto, o vagão se enche de sangue e o corpo de Daniel se esparramou sem vida pelo chão.

Com o impacto da mordida, Daniel acordou gritando. O vagão todo lhe olhando com olhar de medo. “Você está bem, rapaz?” – Perguntou a senhora sentada ao seu lado. Balançando a cabeça em sentido afirmativo,  Daniel se dirigiu a porta e saltou do vagão. Estava em sua estação. Havia dormido desde a sua entrada no trem até o seu ponto.

Saiu às pressas da plataforma. Ao deixar a estação, mal percebeu que, encostado em uma das pilastras de sustentação da plataforma,  havia um homem de sobretudo, coturnos, olhos azuis e cabelos louros. Com um sorriso que ia de orelha a orelha, o homem começou a lhe seguir.

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