quinta-feira, 6 de março de 2014

Teatro dos Vampíros

Como Luna odiava as noites de sexta feira. Saia do trabalho as oito, vendo todos os colegas de trabalho indo para Happy Hours que aconteciam no centro da cidade. Eram tantas gargalhadas e olhares felizes que ela tinha nojo. Sempre tentava fugir do chefe cinco minutos antes para evitar toda a felicidade compartilhada entre os companheiros de trabalho.

Andando com toda pressa, Luna só pensava em chegar em casa e encontrar sua avó. Aquela velha caquética. O resto da família havia morrido em um acidente de carro. A cabeça de sua mãe até hoje não foi encontrada. O corpo do pai apenas os peritos do IML viram e somente Deus sabe quais partes foram enterradas no caixão. Luna apenas viu o carro, uma bola de ferro banhada de sangue e vísceras.

Ela teria ficado sozinha e tido a liberdade de fazer o que quisesse sem a presença de seus pais para controlar sua vida. Mas a velha continuará ali. Depois de três ataques cardíacos ela não conseguia mais tomar banho nem comer sozinha. Metade do salário de Luna ia nas fraldas que a avó usava. Luna odiava as fraldas. Odiava também os banhos, as refeições, carregar aquele peso morto no trajeto entre a sala e o quarto. Odiava tudo.

O caminho para casa era sempre recheado de imaginações nas quais Luna encontrava sua avó sem pulso fitando o vazio. Certamente seria uma alegria ver o caixão descer e imaginar em como a carne daquela velha movimentaria o ecossistema. Infelizmente, o pulso estava sempre ali quando Luna adentrava sua casa e olhava para a avó vendo TV.

Seu celular tocou. “Andrea, aquela puta!”. Andrea era a melhor amiga de Luna. Estivera presente no enterro dos pais e desde então era alguém que mantinha contato com a garota. Luna adoraria receber uma ligação dizendo que a amiga havia escorregado durante o banho, quebrando o vidro do Box, entrando em seu crânio e lhe tirando a vida.

Naquela noite os pensamentos de Luna eram os mesmos. A lua cheia preenchia o caminho sem iluminação entre os blocos da quadra. Aquela luz pálida fazia a garota de cabelos negros chorar. Ela sempre pensava em como seria sua vida se os pais não estivessem na rodovia naquela tarde. Ou se teria sido melhor estar no carro com eles.

No meio do caminho um forte vento a atingiu. Ela parou. Aquilo não era normal, sua espinha estava eriçada e todos os seus cabelos se arrepiaram. A garota se transformou em uma confusão de cabelos e vestido esvoaçados pela forte presença que a tocava.

O cenário mudou. De repente os blocos de prédios que ela via todos os dias desde que mudara para aquele lugar se transformaram em nada. Um vazio se apoderou do local que estava banhado apenas com a luz da lua. Em um piscar de olhos, o cenário mudou novamente. Luna estava em um grande local plano, com teto baixo sustentado por quatro pilastras em estilo romano; não havia paredes, sendo o local coberto por uma vegetação de um verde escuro e sinistro. A luz do luar ainda estava lá.

Névoa. Vento. Terror.

Algo lhe abraçava por trás. O rosto alvo e jovem, com grandes olhos verdes, estava com os lábios rosados colados em seu ouvido. O cabelo louro penteado rente ao rosto angular combinavam com o traje negro do homem que a segurava. Ela se apoderou de pavor.

- Bem vinda ao Teatro dos Vampiros!

O ar gélido que saiu da boca do homem congelou a alma de Luna que a essa altura tinha o rosto coberto de lágrimas de pavor.

- Hoje você se juntará a nós. Seu coração será consumido pela escuridão. Dela nós viemos e para ela sempre voltaremos. A luz lhe deixou a muito, criança. Você não pertence mais a um mundo no qual as pessoas podem ser salvas. –o homem apertou o rosto de Luna com uma das mãos – Quão escuro está o seu coração? E há quanto tempo você não valoriza o que está ao seu lado?

- Por favor. – Implorou a garota.

-Por favor? É isso que você tem a me dizer? É Isso que a garota que queria matar a avó sufocada com a própria merda tem a me dizer? É isso que a garota que pensou em desparafusar as hélices do ventilador para que a hélice voasse quando um dos colegas de trabalho o ligasse, na esperança de que no mínimo uma cabeça voasse pelo escritório me diz? É isso que a menina que queria abrir a barriga da melhor amiga e dar suas tripas ao cachorro tem a dizer? É só isso?

-Eu nunca quis fazer nada disso – disse a garota aos soluços.

-Você sempre quis se banhar no sangue de todos que a rodeavam. Você sabe o porque da cabeça de sua mãe nunca ter sido encontrada. Você a chutou para que caísse no rio que ficava perto de onde o carro bateu. Você sempre quis a morte de todos. Sempre quis ser uma de nós.

De súbito, os dois estavam cercados por inúmeros seres encapuzados, trajando um manto negro. Era possível ver rostos aflitos nos mantos. Luna percebeu que os mantos eram feitos com a alma de pessoas como ela, pessoas que ficaram presas naquele pesadelo.

- Sabe porque aqui se chama Teatro dos Vampiros? Aqui todos fingem ser o que não são. Todos fingem ser pessoas boas que nunca quiseram fazer o mal.

O homem soltou Luna, jogando-a em direção ao chão molhado. A garota viu que o chão não era preto, e sim rubro. Sangue. O piso estava banhado em sangue.

- Todos fingem ter o coração puro, banhado em luz. Todos que vêm até aqui atuam. E nós somos a plateia. Nós somos Deus. Eu sou Deus. Sabemos a verdade por trás de toda a encenação barata, de todas as desculpas.

Luna sabia que era o fim. Sabia que não veria mais o sorriso dos amigos no fim do expediente todas as sextas. Sabia que não veria o olhar travesso de seu chefe quando a via saindo cinco minutos mais cedo. Sabia que não ouviria a voz feliz de Andrea ao telefone. Sabia que não veria o sorriso da avó ao entrar em casa; era uma das poucas coisas que ela ainda podia fazer...sorrir ao ver Luna.

O louro sorriu, fitando Luna com os olhos verdes. O homem agora segurava uma foice. A morte. O ambiente tremeu. As figuras encapuzadas fugiram, arrastando seus mantos para a escuridão que haviam criado. Asas, o louro tinha asas negras...e olhos vermelhos. O teto começou a cair, fazendo com que o brilho da lua invadisse o lugar. Luna se encolheu e pediu a Deus que protegesse sua avó. Deus. Há quanto tempo Luna não pensava nele? “Nós somos Deus. Eu sou Deus”, dissera o diabo que se materializava em sua frente.

-Você não pode ser Deus.

-Sim, eu sou Deus. O da morte. O que levará sua alma para as profundezas, o que levará você para sofrer tudo aquilo que desejou a todos. O que vai te foder todos os dias ouvindo você gritar por salvação. Eu sou o Deus que o seu coração merece. Eu sou a escuridão que você criou, sou tudo o que resta de você.
Luna continuou rezando enquanto o homem falava. Ele agora tinha presas e um único chifre que emanava do meio de sua testa. A pele branca marcada por veias negras. Luna rezou. Rezou ao Deus que acreditava que existia antes de ver o corpo dos seus pais. Rezou ao Deus que esquecerá que existia ao chutar a cabeça de sua mãe para o rio, ao desejar a morte de todos, ao decidir ser um ser das trevas. O teto desabou mais.
A luz da lua adentrou o ambiente. Não era a lua. Era o Deus de Luna. O teto ruiu por completo. O diabo queimou, soltando um grito de dor que arrancou toda a vida da garota.  Seu cabelo negro tinha fios brancos devido ao estresse e ao terror que havia vivido.

O Teatro dos Vampiros ruiu.

Luna acordou caída no chão do bloco. Foi um sonho. Foi apenas um sonho.

Luna correu para sua casa. Abriu a porta disposta a dar o mais caloroso abraço em sua avó. Fazia tanto tempo que não a abraçava que nem sabia mais qual era a sensação. Correu direto para a sala, para a poltrona em que sua avó ficava. A idosa fitava o vazio, de boca aberta. Luna parou no portal da sala ao ver a expressão de sua avó. Não tinha pulso. Sua avó morrerá.

Ao lado da poltrona, em uma escrivaninha de mogno, havia um cartão preto preenchido com letras brancas.

A escuridão estará em você para sempre. Seu coração pertence a nós. Sua alma pertence a mim. Seu Deus lhe salvou uma vez. Mas não pôde salvar o que poderia ter te feito feliz de novo.

Aguardo-te no Teatro dos Vampiros. 

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