Como Luna odiava as noites de
sexta feira. Saia do trabalho as oito, vendo todos os colegas de trabalho indo
para Happy Hours que aconteciam no centro da cidade. Eram tantas gargalhadas e
olhares felizes que ela tinha nojo. Sempre tentava fugir do chefe cinco minutos
antes para evitar toda a felicidade compartilhada entre os companheiros de
trabalho.
Andando com toda pressa, Luna só
pensava em chegar em casa e encontrar sua avó. Aquela velha caquética. O resto
da família havia morrido em um acidente de carro. A cabeça de sua mãe até hoje
não foi encontrada. O corpo do pai apenas os peritos do IML viram e somente
Deus sabe quais partes foram enterradas no caixão. Luna apenas viu o carro, uma
bola de ferro banhada de sangue e vísceras.
Ela teria ficado sozinha e tido a
liberdade de fazer o que quisesse sem a presença de seus pais para controlar
sua vida. Mas a velha continuará ali. Depois de três ataques cardíacos ela não
conseguia mais tomar banho nem comer sozinha. Metade do salário de Luna ia nas
fraldas que a avó usava. Luna odiava as fraldas. Odiava também os banhos, as
refeições, carregar aquele peso morto no trajeto entre a sala e o quarto.
Odiava tudo.
O caminho para casa era sempre
recheado de imaginações nas quais Luna encontrava sua avó sem pulso fitando o
vazio. Certamente seria uma alegria ver o caixão descer e imaginar em como a
carne daquela velha movimentaria o ecossistema. Infelizmente, o pulso estava
sempre ali quando Luna adentrava sua casa e olhava para a avó vendo TV.
Seu celular tocou. “Andrea,
aquela puta!”. Andrea era a melhor amiga de Luna. Estivera presente no enterro
dos pais e desde então era alguém que mantinha contato com a garota. Luna
adoraria receber uma ligação dizendo que a amiga havia escorregado durante o
banho, quebrando o vidro do Box, entrando em seu crânio e lhe tirando a vida.
Naquela noite os pensamentos de
Luna eram os mesmos. A lua cheia preenchia o caminho sem iluminação entre os
blocos da quadra. Aquela luz pálida fazia a garota de cabelos negros chorar. Ela
sempre pensava em como seria sua vida se os pais não estivessem na rodovia
naquela tarde. Ou se teria sido melhor estar no carro com eles.
No meio do caminho um forte vento
a atingiu. Ela parou. Aquilo não era normal, sua espinha estava eriçada e todos
os seus cabelos se arrepiaram. A garota se transformou em uma confusão de
cabelos e vestido esvoaçados pela forte presença que a tocava.
O cenário mudou. De repente os
blocos de prédios que ela via todos os dias desde que mudara para aquele lugar
se transformaram em nada. Um vazio se apoderou do local que estava banhado
apenas com a luz da lua. Em um piscar de olhos, o cenário mudou novamente. Luna
estava em um grande local plano, com teto baixo sustentado por quatro pilastras
em estilo romano; não havia paredes, sendo o local coberto por uma vegetação de
um verde escuro e sinistro. A luz do luar ainda estava lá.
Névoa. Vento. Terror.
Algo lhe abraçava por trás. O rosto
alvo e jovem, com grandes olhos verdes, estava com os lábios rosados colados em
seu ouvido. O cabelo louro penteado rente ao rosto angular combinavam com o
traje negro do homem que a segurava. Ela se apoderou de pavor.
- Bem vinda ao Teatro dos
Vampiros!
O ar gélido que saiu da boca do
homem congelou a alma de Luna que a essa altura tinha o rosto coberto de
lágrimas de pavor.
- Hoje você se juntará a nós. Seu
coração será consumido pela escuridão. Dela nós viemos e para ela sempre
voltaremos. A luz lhe deixou a muito, criança. Você não pertence mais a um
mundo no qual as pessoas podem ser salvas. –o homem apertou o rosto de Luna com
uma das mãos – Quão escuro está o seu coração? E há quanto tempo você não
valoriza o que está ao seu lado?
- Por favor. – Implorou a garota.
-Por favor? É isso que você tem a
me dizer? É Isso que a garota que queria matar a avó sufocada com a própria
merda tem a me dizer? É isso que a garota que pensou em desparafusar as hélices
do ventilador para que a hélice voasse quando um dos colegas de trabalho o
ligasse, na esperança de que no mínimo uma cabeça voasse pelo escritório me
diz? É isso que a menina que queria abrir a barriga da melhor amiga e dar suas
tripas ao cachorro tem a dizer? É só isso?
-Eu nunca quis fazer nada disso –
disse a garota aos soluços.
-Você sempre quis se banhar no
sangue de todos que a rodeavam. Você sabe o porque da cabeça de sua mãe nunca
ter sido encontrada. Você a chutou para que caísse no rio que ficava perto de
onde o carro bateu. Você sempre quis a morte de todos. Sempre quis ser uma de
nós.
De súbito, os dois estavam
cercados por inúmeros seres encapuzados, trajando um manto negro. Era possível
ver rostos aflitos nos mantos. Luna percebeu que os mantos eram feitos com a
alma de pessoas como ela, pessoas que ficaram presas naquele pesadelo.
- Sabe porque aqui se chama
Teatro dos Vampiros? Aqui todos fingem ser o que não são. Todos fingem ser
pessoas boas que nunca quiseram fazer o mal.
O homem soltou Luna, jogando-a em
direção ao chão molhado. A garota viu que o chão não era preto, e sim rubro.
Sangue. O piso estava banhado em sangue.
- Todos fingem ter o coração
puro, banhado em luz. Todos que vêm até aqui atuam. E nós somos a plateia. Nós
somos Deus. Eu sou Deus. Sabemos a verdade por trás de toda a encenação barata,
de todas as desculpas.
Luna sabia que era o fim. Sabia
que não veria mais o sorriso dos amigos no fim do expediente todas as sextas.
Sabia que não veria o olhar travesso de seu chefe quando a via saindo cinco
minutos mais cedo. Sabia que não ouviria a voz feliz de Andrea ao telefone. Sabia
que não veria o sorriso da avó ao entrar em casa; era uma das poucas coisas que
ela ainda podia fazer...sorrir ao ver Luna.
O louro sorriu, fitando Luna com
os olhos verdes. O homem agora segurava uma foice. A morte. O ambiente tremeu.
As figuras encapuzadas fugiram, arrastando seus mantos para a escuridão que
haviam criado. Asas, o louro tinha asas negras...e olhos vermelhos. O teto
começou a cair, fazendo com que o brilho da lua invadisse o lugar. Luna se
encolheu e pediu a Deus que protegesse sua avó. Deus. Há quanto tempo Luna não
pensava nele? “Nós somos Deus. Eu sou Deus”, dissera o diabo que se
materializava em sua frente.
-Você não pode ser Deus.
-Sim, eu sou Deus. O da morte. O
que levará sua alma para as profundezas, o que levará você para sofrer tudo
aquilo que desejou a todos. O que vai te foder todos os dias ouvindo você
gritar por salvação. Eu sou o Deus que o seu coração merece. Eu sou a escuridão
que você criou, sou tudo o que resta de você.
Luna continuou rezando enquanto o
homem falava. Ele agora tinha presas e um único chifre que emanava do meio de
sua testa. A pele branca marcada por veias negras. Luna rezou. Rezou ao Deus
que acreditava que existia antes de ver o corpo dos seus pais. Rezou ao Deus
que esquecerá que existia ao chutar a cabeça de sua mãe para o rio, ao desejar
a morte de todos, ao decidir ser um ser das trevas. O teto desabou mais.
A luz da lua adentrou o ambiente.
Não era a lua. Era o Deus de Luna. O teto ruiu por completo. O diabo queimou,
soltando um grito de dor que arrancou toda a vida da garota. Seu cabelo negro tinha fios brancos devido ao estresse
e ao terror que havia vivido.
O Teatro dos Vampiros ruiu.
Luna acordou caída no chão do
bloco. Foi um sonho. Foi apenas um sonho.
Luna correu para sua casa. Abriu
a porta disposta a dar o mais caloroso abraço em sua avó. Fazia tanto tempo que
não a abraçava que nem sabia mais qual era a sensação. Correu direto para a
sala, para a poltrona em que sua avó ficava. A idosa fitava o vazio, de boca
aberta. Luna parou no portal da sala ao ver a expressão de sua avó. Não tinha
pulso. Sua avó morrerá.
Ao lado da poltrona, em uma
escrivaninha de mogno, havia um cartão preto preenchido com letras brancas.
A escuridão estará em você para sempre. Seu
coração pertence a nós. Sua alma pertence a mim. Seu Deus lhe salvou uma vez.
Mas não pôde salvar o que poderia ter te feito feliz de novo.
Aguardo-te no Teatro dos Vampiros.
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